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O Processo de Abstração e a Nobreza do Intelecto Agente em São Tomás de Aquino




Carlos Eduardo Carneiro Costa Hermeto[1]

 

            Todo ente tende a sua perfeição pela natureza que lhe é própria. Logo, o homem enquanto ser intelectual, direciona-se ao seu fim último pela sua potência superior, o intelecto.[2] O nome desta potência provém da sua operação, o inteligir. O verbo latino intelligere, é composto por intus e legere, que significa “ler dentro”.[3] Ao conhecer os entes materiais, o ser humano não permanece na superficialidade da matéria sensível, mas é capaz de conhecer (“ler”) a perfeição imaterial contida no interior dos entes, ou seja, essência (a forma) de cada ser.[4]


            Sendo animal racional, possui dois diferentes âmbitos de conhecimento, o sensitivo devido a sua animalidade e o intelectivo devido sua racionalidade. O seu conhecimento começa pelos sentidos exteriores (visão, audição, olfato, paladar e tato), que em contato com os objetos próprios exteriores, são atualizadas pelas impressões sensíveis. Estas por sua vez são coletadas pelas potências interiores sensitivas do homem (senso comum, imaginação, memória e cogitativa). Dentre essas, atua primeiramente o senso comum, potência interior responsável por receber, juntar e discernir estas diferentes impressões exteriores. O produto deste discernimento do senso comum é a espécie sensível, também conhecido na terminologia escolástica como “fantasma”. Que na potência da imaginação é apreendido e conservado, sendo esta como o tesouro das espécies sensíveis. A estimativa (cogitativa) apreende as espécies intencionais ( espécies sensíveis que não foram diretamente recebidas pelo sentidos) e a memória armazena essas espécies intencionais. Estas 4 potências trabalham juntas para preparar o substrato sensível a ser abstraído pelo intelecto.[5]

           

. Sendo os seres constituídos de matéria e forma, possuem em sua constituição uma razão imaterial (a forma), e por isso são potencialmente inteligíveis aos homens.[6] Para a atualização deste conhecimento, faz-se necessário a distinção de duas faculdades intelectivas. Uma responsável por retirar do conhecimento sensitivo a forma universal contida na matéria particular, e outra para receber e armazenar o conhecimento formal. Respectivamente nomeadas por intelecto possível e intelecto agente. O princípio agente opera sobre as espécies potencialmente inteligíveis da imaginação tornando-as inteligíveis em ato. Estando as espécies em ato, atualizam o princípio passivo, que por sua vez recebe, armazena e considera o conhecimento.


Sendo assim pode-se designar o intelecto agente (ativo) como o responsável de fazer a atualização das espécies sensíveis, para espécies inteligíveis.[7] Para ilustrar a ação deste intelecto, Santo Tomás, assim como os filósofos anteriores, utilizam-se da imagem da luz: “O intelecto agente e o intelecto possível referem-se às representações imaginárias, as quais estão para o intelecto possível como as cores para a visão, e para o intelecto agente como as cores para a luz, como se diz no livro III Da alma.”[8]. Portanto, assim como os olhos não conheceriam as cores sem a luz, assim também o intelecto possível, sem o ato do agente, não poderia receber os inteligíveis. Esta ação ilustrada pela iluminação, a de retirar princípios universais da matéria particular, é chamada de abstração.[9]

O intelecto possível (passivo), é a potência que recebe as formas inteligíveis, sem nada perder. É definido como: “princípio pelo qual a alma se torna as coisas”[10]. Cabe, porém, a essa faculdade não só receber, mas também conservar e considerar os inteligíveis em ato. Este quando se refere à conservação ordenada das espécies, é chamado de intelecto em estado de habitus; [11] quando estas por sua vez são consideradas, é denominado como intelecto em ato, ou consumado.


Visto que o intelecto possível é aquele que está em potência para receber a perfeição do conhecimento, e que os fantasmas não possuem a imaterialidade ao qual este está disposto a receber, a intelecção depende essencialmente[12] do intelecto agente. Ele é princípio causal das perfeições universais recebidas pelo homem.[13] E, por isso, que o Doutor Comum o considera como o principal e primeiro agente do homem:

 

[...] intellectus vero agens ut agens principale et primum. Et ideo effectus actionis relinquitur in intellectu possibili secundum conditionem utriusque, et non secundum conditionem alterius tantum; et ideo intellectus possibilis recipit formas ut intelligibiles actu, ex virtute intellectus agentis [...].[14]

 

Tendo por certa a precedência causal do intelecto agente no processo de intelecção, não advém, porém que a perfeição da alma humana convenha a ele, pois é a integração das potências é que dá ao homem a sua unidade de natureza. Entretanto, deve se afirmar que dentre todas as potências da alma humana o intelecto agente é a mais nobre: “E, mesmo que toda a alma seja mais perfeita que o intelecto agente, nenhum outro poder da alma é mais nobre que o intelecto agente.”[15].

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

ARISTÓTELES, Metafísica: volume II; ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentários de Giovanni Reale; tradução Marcelo Perine. São Paulo, Loyola, 2015.

 

SALLES, Sergio de Souza, A resolutio como itinerário metafísico de Santo Tomás de Aquino: A elevação da dýnamis aristotélica a potentia essendi nas Quaestiones disputatae De Potentia Dei. Rio de Janeiro, 2002. 329 f. Tese de Doutorado. Faculdade de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

 

THOMAS AQUINAS. Questiones Disputatae de Veritate, Questions 1-9. Translated by Robert W. Mulligan, S.J. Chicago: Henry Regnery Company, 1952. <Disponível em: https://isidore.co/aquinas/QDdeVer.htm>. Acesso em: 08 nov. 2021.

 

TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica: a criação, o anjo, o homem, volume 2: I parte: questões 44-119. São Paulo: Loyola, 2016. V.2.

 

TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica: a fé, a esperança, a caridade, a prudência, volume 5: II-II parte: questões 1-56. São Paulo: Loyola, 2021. V.5.

 


[1] Graduando em Teologia pela PUC-RJ. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3761-4105. E-mail: ce.hermeto@hotmail.com  

[2] “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber.” ARISTÓTELES, Metafísica, p. 3.

[3]Dicendum, quod nomen intellectus sumitur ex hoc quod intima rei cognoscit; est enim intelligere quasi intus legere: sensus enim et imaginatio sola accidentia exteriora cognoscunt; solus autem intellectus ad interiora et essentiam rei pertingit.” QDV, q. 1, a. 12, co.

[4] “A palavra inteligência implica um conhecimento último: inteligir é algo como ler dentro. E isso é claramente manifesto a quem considerar a diferença entre inteligência e sentidos. Com efeito, o conhecimento sensitivo ocupa-se das qualidades sensíveis exteriores; o conhecimento intelectivo, porém, penetra até a essência da coisa. O objeto da inteligência, como diz Aristóteles, é ‘o que cada coisa é’.” STh II-II, q. 8, a. 1, co.

[5] STh, I, q. 78, a. 4, co.

[6] “As representações imaginárias, ao contrário, são antes semelhança em ato de certas imagens, mas são imateriais em potência.”. STh I, q. 79, a 4, co.

[7] Ipsa vero mens est intelligibilis in actu; et secundum hoc ponitur in anima intellectus agens, qui faciat intelligibilia in potentia esse intelligibilia in actu.” QDV, q. 10, a. 6 co.

[8] STh I, q. 54, a. 4, co.

[9] Tomás caracteriza o esforço do intelecto em alcançar as espécies inteligíveis como [...] a própria operação do intelecto agente pela qual abstrai a espécie inteligível ou forma das condições materiais e individuantes encontradas nos entes sensíveis (per abstractionem a conditionibus materialibus et individuantibus). SALLES, Sergio de Souza, A resolutio como itinerário metafísico de Santo Tomás de Aquino: A elevação da dýnamis aristotélica a potentia essendi nas Quaestiones disputatae De Potentia Dei. 329 f. Dissertação (Tese de Doutorado), Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2000.

[10] STh I, q. 79, a. 7, co.

[11] “Ora, diz-se que o intelecto possível se torna cada coisa, na medida em que recebe as imagens de cada coisa. Pelo fato de receber as imagens inteligíveis, pode operar quando quiser, mas não opera sempre, pois mesmo então está de certa maneira em potência, embora de uma maneira diferente que antes de conhecer; isto é, do modo pelo qual aquele que tem um conhecimento in habitu está em potência para considerar em ato.” STh I, q. 79, a. 6, co.

[12] “De modo que a intelecção, operação produzida pelo intelecto passivo, depende essencialmente da ação do intelecto ativo: é ele que torna ativo o intelecto que chamamos de passivo. NICOLAS, J. N. Nota do tradutor.” In: STh I, q. 54, a. 4, co.

[13]intelecto agente é causa do universal abstraindo-o da matéria.”. STh I, q. 79, a. 5, ad. 2.

[14] QDV, q. 10, a. 6, ad. 7.

[15]Quamvis autem tota anima sit perfectior quam intellectus agens, non tamen quaelibet alia potentia animae est nobilior intellectu agente.” QDV, q. 20, a. 2, ad. 5.

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